texto da vídeo-performance : play <
< play : atenção ! esta é uma obra de ficção. qualquer alusão à realidade é mera coincidência. isto pode ser um documento arqueológico de/composto pela memória e transposto com palavras em julho de 2021. uma dramaturgia, um drama, uma dramarqueologia. muitas lembranças e histórias do passado distante, do menos distante, mas todos passados atravessados por este agora duro, cruel, desumano e insuportável. é possível que no curso desse fluxo muita coisa seja perdida ou inventada. afinal, a gente sempre corta, inventa, transforma ou deforma os vazios que a gente não lembra. neste drama, decidi não citar nomes de pessoas, nem de instituições. apenas títulos de trabalhos, de projetos, lugares públicos e as geografias serão mencionadas. isto não é uma tese. eu fui convidado para criar um vídeo documental para falar dos meus processos a partir de alguns trabalhos ou apresentar meu interesse em arte e dança no lugar onde eu vivo. após alguns poucos dias (é comum não se ter muito tempo) pensando em como fazer, me senti oscilando entre as duas possibilidades. então, imaginei contar algumas histórias, situações e características/condições que contorna/ra\m as minhas iniciativas na área da dança. também cheguei à esta ideia quando comecei a pensar quais trabalhos selecionar e senti que todos estariam presentes neste corpo de vista. também fiquei muito curioso em viver a aventura de escrever dessa forma. todos os trabalhos que criei, e também aqueles de outres que eu dancei, cada experiência e seus respectivos contextos, informaram o que eu fui escolhendo e fazendo. cada trabalho, pessoas e contextos, são marcas na minha pele hoje, no meu pensamento, na minha dança. por isso sempre tento escapar deste tipo de recorte, mesmo consciente de que isto aqui é um recorte. é possível que minhas lembranças sejam todas de tonalidades saudosistas, porque tenho mesmo saudade de um tempo em que eu acreditava que seria possível algum dia me sentir um profissional da dança com dignidade. infelizmente, este sentimento nunca se faz presente. há vinte e seis anos tenho me dedicado a estudar, pesquisar e dançar. vinte deles na cidade de são paulo, outros seis na europa. já cruzei o oceano atlântico a trabalho mais de uma centena de vezes, a maioria delas ilegalmente, sem vistos de trabalho, burlando as imigrações com o sorriso dos trinta anos que achava uma graça encardida quando me perguntavam na época do ronaldinho se eu jogava futebol e eu só pensava carimba logo essa merda. será que isso mudou? será que todos os artistas que viajam para trabalhar daqui pra lá têm visto de trabalho? se tem passaporte europeu não entra nessa conta. eu não tenho. e o que isso significa? dinheiro. visto de trabalho custa em tempo e em dinheiro para os dois lados, mas mais em dinheiro pro lado de lá, quando lá, faz o que a burocracia legal requer. mas, não é sempre assim. então, pra viver um pouco da colonizada, você faz a deslumbrada que ama a europa e se joga no truque da turista e pronto. a gente já é colonizada aqui, então ser colonizada ganhando em euro dá pra comprar um bom vinho que não custa o aluguel. dá até pra comer queijo! não tô falando mussarela. me refiro a queijo mesmo. quer papo mais colonizado que este? tem uma lista de comidas e coisas, mas isso aí já cobriu o que interessa: a dignidade de poder comer um queijo! mas eu tô falando de supermercado classe média. existe alguém que gostaria de ser de uma classe abaixo da média? mesmo os artistas que ganham mal por lá, podem fazer dieta orgânica, mas é evidente que por lá também existe o dia. afinal, tá cheio de imigrantes querendo comer queijo. eu fui deportado uma vez, em 2006, morando em são paulo, após a estreia do médelei – eu sou brasileiro (etc) e não existo nunca fui para londres criar uma peça com estudantes. eu estava cansado, naquele pós-estreia, exausto na verdade, o médelei foi meu primeiro trabalho no brasil dirigindo um grupo. na hora de entrar no reino unido, não consegui dar aquele sorriso encardido e fui detido com um contrato, uma porção de glitter na mala e sem visto de trabalho. eu sempre me perguntava o que fazia um oficial suspeitar de alguém. a origem? o destino? a aparência? a energia? e a fila da alfândega com um oficial em pé escolhendo quem vai declarar e quem vai passar cheio de nada a declarar? enfim, fui conduzido para uma sala de imigração, revistado no corpo e na mala quando tive que responder perguntas do tipo are you fit and happy? – você está em forma e feliz? – fui fotografado daquele jeito que vemos em filmes quando registram criminosos, de frente e de perfil. após melar os dedos de tinta para entregar as digitais de todos os dedos da mão direita e da esquerda, fui encaminhado junto de mais alguns para uma sala de espera onde se recebia um sanduíche através de uma janelinha de vidro. enquanto eu esperava, as autoridades de lá falavam com a contratante. era um sábado, e os advogados da contratante só estariam disponíveis na segunda-feira. minha barba crescia. após umas quinze horas de voo e mais umas doze lá sentado, eu só queria voltar pra casa mesmo. finalmente, sou informado que não poderia entrar no país, mas que poderia aguardar o visto onde fiz a conexão – madri – e quando recebesse o visto retornaria. a contratante se desculpou pelo telefone. e eu também porque naquele tempo eu acreditava que era minha obrigação não ser pego pela imigração. me senti culpado e arrasado, achando que nunca mais poderia viajar. fui conduzido por um policial até a sala de embarque. minha mala sendo carregada por um funcionário do aeroporto e meu passaporte pelo policial. antes de chegar no balcão da sala de embarque, aquela entrada triunfal com os olhares de todes querendo saber o que estava acontecendo. por que a polícia estava lá? quem era eu? um terrorista? eu tenho cara de quê? no aeroporto: 1. jogador de futebol 2. mula 3. imigrante. e nas ruas da europa: 1. árabe 2. israelense 3. espanhol – estas são as nacionalidades que sempre chutavam pra mim. e no brasil a gente tem cara de quê? de fome? de corrupto? a funcionária do balcão informada que eu entraria naquele avião começa a preencher um papel e diz que eu devo pagar para despachar minha bagagem. eu digo que não pagaria porque não era minha escolha voltar. me pediu para escrever isso no papel e assinar. começa o embarque. todes entram e nós entramos por último. começamos a caminhar e eu peço meu passaporte ao policial. ele responde que ficará com a tripulação. eu pergunto por que. ele diz que será devolvido em madri e entra na cabine do piloto. eu espero na porta. pessoal todo assustado com possível terrorista a bordo. policial sai da cabine do piloto e me pede para acompanhá-lo até meu assento lá no fundo última fileira. então amiga, prepara seu catwalk e vai arrasar nessa passarela até o seu devido lugar com todes os olhares arregalades só pra você. arrasa ! sentei e dormi. recebi meu passaporte na saída do avião. pensei, gente! pra quê ficar com meu passaporte se me devolveriam na saída da aeronave. para onde eu fugiria dentro do avião? lembrei das torres gêmeas e que eu poderia fazer uma caneta virar faca. seria esta a razão? desembarcada e lá vamos nós para outra imigração porque o reino unido não faz parte do acordo de schengen. expliquei a situação e a espanha me concedeu a entrada. na esteira esperando a mala espera esteira espera minha mala não chegou. vou até o balcão e fico sabendo que na verdade eu havia perdido minha conexão para são paulo. eu explico que estava sendo deportado por falta de um visto de trabalho e que os ingleses me pediram para ficar em madri até receber o visto na segunda-feira. vários telefonemas depois e, possivelmente, pelo horário e estado da minha cara sem banho há mais de vinte e quatro horas, a cia aérea resgatou minha passagem e informou que minha mala havia seguido no voo para são paulo e que portanto só a receberia depois. me pediram endereço para entrega. eu disse que não sabia, ainda teria de procurar um hotel. já era quase meia-noite e a cidade estava lotada com uma maratona e um grande congresso. telefonei para o meu namorado na época, no brasil, e chorei. ele me confortou, procurei onde me sentar e depois deitar e por lá dormi. no dia seguinte andando por madri consegui achar um hotel. um hotel design! peguei o primeiro que achei sem pestanejar. a contratada pagaria. foi o combinado. e também poderia comprar algumas peças de roupa até minha mala chegar. fui numa loja de departamento sueca conhecida por toda europa. no dia seguinte acordo com a cara, braços e as mãos e cheias de pontos vermelhos. entendi que estava rolando uma homeostasia da humilhação. voltei pra cama. uma semana depois o visto, um papel, chegou por email e então marquei a passagem. minha mala já havia chegado. vamos lá. entrei. com uma semana de atraso, criei uma peça chamada it com doze dançarines de várias nacionalidades. fiz uma bola humana. todes as doze emboladas, com as caras grudadas nas coxas umas das outres, no sovaco, na virilha, no peito, na bunda, por toda parte. sacola de plástico, rádio, garrafa pet com água, comida, entre outras coisas no meio delas também. era uma bololô que se movia. esse gesto para a pele de uma escola inglesa parecia radical. pra mim normal. principalmente após ter vivido o médelei que era isso elevado à máxima potência dos clichês. esse princípio embolado acabou se desdobrando no ano seguinte – 2007 – em um reencontro com uma amiga e artista na criação de um dueto chamado show: sobre o que a gente vê (volume 1) que se transformou em eletroquímicos, baby no ano seguinte. este reencontro foi acontecendo gradativamente em são paulo. a gente comprou duas perucas loiras para fazer uma performance em um festival mix da cidade, fizemos uma performance dentro e em cima de um carro na frente de um bar-restaurante burguês na alameda franca, no memorial da américa latina e em alguns bares do tipo sarajevo na augusta. minha amiga cantava, eu botava música e a gente se pegava. não faltava química entre nós. fizemos uma biografia inventada para essas duas figuras loiras, seus nomes, suas famílias e suas origens. nossa parceria se intensificou em um período de residência artística em um antigo convento localizado em st erme, a nordeste de paris, frança, entre reims e laon. um lugar, que ainda existe, inventado por um professor da época que estudei em bruxelas em uma escola que retroalimenta-se de rosas. ficamos por lá uns dois meses, fazendo vídeos no mato ao redor e dentro do convento, vendo vídeos de arte, cozinhando, lendo, conversando, conhecendo gente que por lá passava, organizando festas e ajudando o espaço nas tarefas do dia-a-dia. minha amiga até cortou o cabelo do professor enquanto conversávamos, transformando a área da entrada do convento em uma espécie de salão filosófico. ousadia é uma característica marcante da personalidade dessa minha amiga. neste mesmo período, ali mesmo, aconteceria simultaneamente comigo outra residência de um novo projeto de uma outra amiga e artista da espanha que despedaçou uma cadeira de raiva durante um dos nossos ensaios do dueto basic dance – dança básica em uma residência em talín na estônia em 2004, o que me fez gostar ainda mais dela neste dia. no entanto, sua nova criação foi a primeira vez que eu pedi para sair de um projeto. muitas tretas acontecendo com um elenco de egos fortíssimos, mas a verdade é que eu estava quimicamente desregulado para permanecer na europa da forma que vivia naqueles anos. me arrependi desse gesto depois. não por ter deixado aquele continente, mas por ter abandonado o projeto de uma amiga e artista que eu admiro, mas era ele ou a minha saúde, e este episódio não separou nossos caminhos. de volta ao brasil de 2008, após a estreia eletroquímica com a minha amiga ousada no teatro de um banco na avenida paulista, continuamos a intensidade do nosso reencontro. um dia, esbarramos na entrada de um teatro em uma professora, pesquisadora e crítica de dança que tenho profunda admiração e saudade. começamos a falar sobre o que estávamos fazendo e pensando, e naquela ocasião também buscando um lugar para trabalhar. foi aí que surgiu um convite para caieiras e o início de um lugar para residências de dança. infelizmente esse espaço não resistiu ao uso de muitos que por lá passaram. e quando eu soube disso, pensei sobre a palavra residência. nossa casa. aquela onde possivelmente a gente lava a louça, recolhe o lixo, limpa, organiza. um reflexo do nosso corpo. e quando se compartilha uma residência, se pratica o coletivo. seria o mesmo princípio do convento de st erme, que ainda existe sem que empregadas tenham de limpar os rastros de quem desfruta do espaço. mas ainda em caieiras, era uma época que a dança chamava suas trocas formativas de workshop ou oficina normalmente com durações mais pontuais, e a gente desejava outro tempo. mas, a duração não era a única razão. a forma de se trabalhar enquanto residência também estava mais alinhada à nossa experiência profissional. uma imersão dilatada em semanas ou meses, em diferentes lugares com porosidade para outres nos atravessar. no brasil, a residência artística era um termo conhecido na área das artes visuais, mas ainda não havia sido absorvido pelo nicho da dança que a gente fazia parte naquele momento. hoje, existe residência que dura algumas horas de um dia. caieiras também acolheu a residência plano b, projeto de um amigo artista de santos que hoje vive em berlin. tenho várias memórias desse período, mas o dia em que eu pedi pra ele ir tocando nas paredes com as mãos, como se estivesse passando a mão nas mãos de outras pessoas da plateia, é a lembrança que sempre me ocorre primeiro. me lembro da cara de pavor dele quando eu disse isso. e quando estreou ele até ensinava a plateia, de forma tátil, o tipo de toque que desejava receber. entre o duo eletroquímico e o solo plano b, surgia a associação/plataforma desaba. seu primeiro desabamento foi uma residência banhada por semiótica peirceana de cor pink que realizou três palestras, uma no planetário do parque ibirapuera vendo estrelas pela lente da teoria dos sistemas, uma na casa modernista ouvindo moda e outra na casa das rosas descascando as subjetividades da palavra desaba que selecionou dez artistas através de uma biografia falsa criada em um formulário que simulava o pedido de visto para entrada no brasil seguida de um blind-date – encontro às cegas – para um período de residência em caieiras. todas as ações inventadas nesta residência se tornaram corpo em uma peça de dança chamada tombo em 2009 que alavancou no ano seguinte a residência arqueologia do futuro, que se perguntava sobre os modos de produção da dança e o que ela produzia além de coreografias para a cena, resultando em uma publicação de mesmo nome lançada em abril de 2011 e que representou o final do projeto, assim como a dissolução da desaba. um misto de alegria e dor, e muito aprendizado, marcou o início de desdobramentos nas trajetórias dos artistas envolvidos nesse projeto. neste mesmo período, entrelaçado à desaba, outro projeto de residência com a amiga artista da dança básica, o apt? a piece… together? – uma peça… juntos? se desenvolvia entre espanha e brasil como um campo de trabalho que investigava diferentes práticas artísticas, performatividades e experimentos entre a palavra, a ação e a experiência intercorporal. em um período em são paulo, também em caieiras, desenvolvemos alguns experimentos. um deles foi criado para abrir um festival em 2010. decidimos “sequestrar” um dueto que estava anunciado para, no seu lugar, experimentar coletivamente we think, we like that – a gente pensa/acha, a gente gosta disso – no qual performers e público embalaram uma sala de espetáculos inteira como uma equipe de mudança. este talvez tenha sido meu gesto mais radical na dança. ainda mais quando se vive numa cidade como são paulo, onde muitos agentes da dança, até o presente, ainda insistem em definir o que pode ser dança. mesmo após toda expansão que a dança já realizou neste sentido desde a pós-modernidade. isso é dança. isso não é dança. como se a dança fosse só uma. aquela, de uma rama da elite neoliberal que impera há mais de um quarto de século no estado de são paulo. passa ano, passa décadas, e não muda o neoliberalismo propagandista camuflado de diversidade. enquanto a burguesia continua a ditar o que pode ser dança através dos editais que distribuem os dinheiros públicos, a dança do interior continua refém das orientações enviadas por artistas da capital através de programas criados para aperfeiçoar suas danças. uma lógica colonizadora e cafona. a cafonice que a jornalista de sobrenome jovem tão bem definiu em seu último artigo antes de nos deixar tão cedo. são paulo é cafona em sua prepotência por excelência. um estado que inventou, não se sabe exatamente como, uma companhia de balé com orçamento de treze milhões por ano enquanto todo o resto das danças se matavam pelos quatro milhões distribuídos pelos proacs da época. o balé da corte cafona inaugurado em um teatro no bixiga disse com sotaque espanhol para uma plateia composta por senhoras e senhores de longa trajetória na dança que a partir de então, finalmente, haveria um balé de excelência na cidade. afundado na poltrona de vergonha eu pensei no balé municipal da cidade que resistia com sua humilde sede ali ao lado na mesma rua e, em uma das grandes damas de um balé com sede na rua augusta onde eu ensaiei meu primeiro solo com pressa de elefante em 1998. enfim, abriram-se as cortinas para o entretenimento daqueles que acham chic um balé. e por ironia, na hora do coquetel um cheiro horrível no saguão espremeu todos os convidados para um lado da mesa que servia bebidas ou para a calçada da rua. era um fedor de esgoto, parecido com aqueles peidos líquidos que são vendidos em lojas de fantasias e curiosidades da vinte e cinco de março. olha só, eu amo um bom balé e como profissional da dança também o experimentei na minha formação. não me refiro a arte do balé, estou apontando aqui para outra direção, se você decidir pegar outro caminho a responsabilidade é sua. eu até fiz um balé em 2008 com uma amiga artista que vestida de cornélia boom com uma camiseta do são paulo futebol clube, sapatilhas de pontas e uma faca na mão foi enforcada no palco pela plateia. outras danças tentaram uma reunião que vale treze milhões. eu mesmo já estive no gabinete do secretário de cultura do governador com nome de instrumento de cortar madeira em 2010 junto de duas amigas da dança levando um projeto excelente de residência artística chamado plataforma ar (ar, de artistas em residência) concebido por um grupo variado de artistas da cidade. coisa grande. a gente até preparou power point com exemplos europeus, porque sabíamos que neoliberal ama o que é das gringa. levamos também um croquí do espaço que havíamos concebido, esboçado por um renomado arquiteto da cidade que foi a nossa senha de entrada para esta manhã inacreditável, quando o secretário escorregadio nos mostrou a maquete do teatro da dança que seria construído ali na frente do seu gabinete que fica ao lado da sala são paulo. o teatro seria a sede da recém inaugurada companhia de balé. uma maquete criada pelos arquitetos que também projetaram um famoso museu no reino unido, excelente por sinal, para o terreno dos chineses que um dia já foi rodoviária da cidade. o teatro da dança nunca saiu da maquete, e o balé continua no piso superior inteiro que tomou para si de uma oficina cultural da rua três rios, deixando-a ainda mais desidratada para as demais atividades artísticas da cidade. milhões gastos em maquetes e desapropriações para um terreno que hoje sustenta um complexo de prédios com janelinhas minúsculas e muros cobertos por aqueles arames farpados enrolados em espiral de guerra para separar as famílias com teto das sem teto e, evidentemente, da cracolândia. excelente projeto imobiliário no quarteirão que a elite atravessa amedrontada com seus carros blindados em direção a sala de concertos para dar uma relaxada no stress causado por uma das maiores metrópoles da américa latina que nem um festival de artes no seu calendário possui. saímos dessa reunião ensaboadas de política para um nova reunião com o coordenador da unidade de fomento e difusão de produção cultural da época, também um cara branco, que já foi diretor do mis e como secretário municipal de cultura foi exonerado pelo prefeito, que agora governa, metido em um escândalo de assédio com sua assessora que delatou um áudio em que ambos discutiam sobre uma viagem que realizaram ao canadá. estas resoluções aconteceram em meio a grandes manifestações da classe artística que se deitou no saguão da secretaria em 2017 contra o desmonte dos programas de fomento à dança da cidade conduzido de forma alinhada ao desmonte da cultura promovido pelo governo fora temer, que aliás me fez ir pra rua manifestar vestido de jamzz lançando golpes de laquê no ar também em protesto ao golpe instalado no país nesta época em que o impeachment de uma presidenta aconteceu sem nenhuma prova. vale voltar ao momento da classe deitada no chão da secretaria solicitando explicações sobre o desmonte da dança, para lembrar a cena dramática e constrangedora que a tal assessora montou ao pedir que a polícia a escoltasse até o teatro para conversar com os artistas. foi a polícia que abriu a ocasião com uma fala lembrava aos presentes sobre o bom comportamento que permitiu a todes estarem ali sentades. e eu só pensava o que realmente está acontecendo quando algo acontece? e de como eu gostaria que este trabalho já estivesse pronto nesse dia para estar ali dentro junto de muitos gargalhando em silêncio como uma assembleia impiedosa diante de uma gestão canalha representada por aquela equipe despreparada para cuidar do que é público em uma cidade diversa e complexa como são paulo. o desmonte seguiu, e a gente sabe que a política não é feita apenas por aqueles que ocupam os cargos oficialmente, mas também por consultores cujos nomes se perdem em um diário oficial. o que se tem na política pública de fomento à dança da são paulo de hoje é um alinhamento do município com o estado. o que impera há mais de vinte e cinco anos no estado está agora também no município. os defensores da lógica da dança única, feita para caber em apenas uma fatia de bolo. a influência para ocupar uma cadeira para decidir quem vai comer bolo é grande, mas ela jamais faz o bolo crescer, não fermenta o fomento. portanto, em uma mesma fatia tem de caber uma grande companhia de balé com cinquenta anos de atuação e um coletivo de três jovens artistas recém formados em universidade e com três anos de atuação. aliás, universidades que não promovem encontros de seus estudantes com artistas que atuam fora delas, a não ser que seja de graça, ou que haja manobras docentes para que isso aconteça de alguma forma. pelo menos deixa evidente ao aluno a realidade da profissão que escolheu. a dança única também ocupou as cadeiras da dança do prêmio de críticos de arte da cidade. as cadeiras vagaram quando outras bundas questionaram sobre a qualidade das produções artísticas de um ano. é pela brecha que se entra na festa! e agora a gente tem crítico de dança formado pelas críticas que publica no seu próprio blog com nome da parede que a arte cênica contemporânea já derrubou há tempos. mas, esta é a pista para compreender críticas com tom de fofoca do que se ouve na fila do teatro, já que existe uma parede impedindo a crítica de adentrar outros tipos de experiências. mas quem não gosta de fofoca? quem nunca fofocou? isso aqui é uma fofoca, no seu ouvido: essas percepções que eu desenrolei aqui ventilam nas filas dos teatros também. e se a dança tivesse coragem poderia também inventar um blog e um prêmio para celebrar os piores críticos, as piores comissões, os piores secretários, os piores curadores, os piores programadores, os piores festivais, os piores editais, etc. seria interessante estremecer a lógica capitalista do melhor e, com bom humor, brindar em noite de gala e troféu também as piores categorias que a dança produz. mas, o medo de se queimar e não comer mais bolo é real. então, segue o baile e parte pra buscar um pedaço da fatia na festa, oferecendo bastante contrapartidas e quantidades de atividades para programar todos os equipamentos públicos e até a rua, fazendo bastante flyers que dão bastante números e publicidade. ajuda as secretarias a programarem seus espaços porque o orçamento deles é sempre muito baixo para a cultura, às vezes até falta para comprar o papel higiênico de um centro cultural. não interessa se o que você vai propor não tem nada a ver com a sua prática. se quiser comer desta única fatia de bolo sem distinção, tem que oferecer bastante contrapartidas. criar só uma peça e apresentá-la gratuitamente não serve. não queira mamar nas tetas. e quando outra fazenda entrar, se mudar a gestão, e as bundas que sentam no rodízio das cadeiras também mudarem, os artistas se adaptam para o que vier. afinal, já praticam há bastante tempo adaptações em seus riders técnicos e em suas coreografias para que elas caibam nos espaços e nos cachês que lhes são propostos. quem coreografa a abundante dança da cidade? os artistas ou as comissões? e por falar em adaptação, depois de ter sequestrado um dueto, empacotado um teatro e publicado um caderno chamado arqueologia do futuro, durante um aquecimento de palco, antes de iniciar uma apresentação, brincando de imitar o que poderia ser, sem sombra para dúvida, dança, eu exclamei que a próxima coisa que faria seria um solo para dar bastante piruetas, para dançar todo o repertório de aulas, de técnicas e referências que faziam parte da minha formação até o momento. foi então que surgiu em 2011 o solo the hot one hundred choreographers – os cem coreógrafos mais quentes, onde eu invocaria com movimento mais de cem referências que in/formaram meus passos na dança. mas não foi somente por esta razão. eu precisava do dinheiro de um festival britânico, que era teen e agora é pop, e também estava apaixonado na época. pela primeira vez eu faria um trabalho em parceria com alguém que borraria os limites entre o pessoal e o profissional. mas isso não era uma questão. era só energia vital produzindo faíscas em um aglomerado de forças. não era como escrever agora dez anos depois. este solo expandiu minha presença em contextos de dança onde jamais havia estado, tanto no brasil como na europa – mesmo não sendo exótico. com ele eu viajei para dançar em muitos lugares e obviamente nunca tive de responder se o que eu fazia era dança. com a minha aura mais equalizada para ser percebida como dança, junto de muitas outres, surgiu um novo projeto de residência artística – lote – uma consequência de todas as iniciativas anteriores e impulsionada pelo frescor que o solo quente conseguiu esquentar. foram cinco edições ao longo de sete anos. um cosmo e uma escola para mim e para as muitas mãos que a desenvolveu junto comigo. uma rede de afetos que promoveu aderências para muitas outres que atravessaram suas ações. residente de uma casa que é do povo na rua três rios, transformou-se em um contexto referencial no brasil e fora dele. facilitou encontros entre artistas profissionais, estudantes e público variado. realizou criações, apresentações públicas, laboratórios, aulas, experimentação e festas, entre muitas outras ações criadas como movimentos de expansão das aventuras que a sua própria prática despertava. as cinco edições do lote tiveram apoio do programa municipal de fomento à dança. um privilégio ter conseguido comer pedaços da fatia, mas este privilégio foi, e ainda é, consequência de uma atuação permanente, com apoios públicos ou sem apoios – que significa apoio da família, da namorade ou de alguém que tenha condições financeiras para te ajudar a não desistir. este tipo de impulso que as políticas públicas injetam em projetos e artistas, não deveria ser tratado como um privilégio. mas esta percepção esbarra em raízes profundas da nossa formação como país. enquanto a cultura não for considerada indispensável para o desenvolvimento humano e de uma sociedade saudável, continuará sujeita ao escanteio de sua existência e fruição. o mesmo deve ser considerado para a educação. cada mudança de governo explicita esta característica. basta olhar nesta direção para o que temos hoje – um ministério da cultura extinto e alocado como pasta anexa ao turismo pelo governo federal. podemos acreditar que isto seja um extremo desta atualidade contornada por aberrações brutais na política, mas a fragilidade do setor é uma realidade visível há muito tempo, senão sempre, não apenas em suas bases estruturantes, mas nas subjetividades que compõem nosso imaginário enquanto cultura e sociedade. dentro desta malha frágil, iniciativas de formação como o lote, assim como outres de mesma natureza, são organismos que escapam da lógica predominante mirada para a produção de entretenimento. são infiltrações em um sistema ainda pautado pelo consumo de eventos e espetáculos como prioridades, e de ações formativas como contrapartidas. e se a prioridade fosse ao contrário? nos anos noventa, antes da explosão dos editais que se tem hoje, um lugar na rua treze de maio no bixiga, idealizado pelo sonho de quatro artistas mulheres da dança, propôs uma nova dança como contexto de formação e produção em um tempo onde artistas também podiam pagar sua in/formação através de permutas, mas nunca de graça, praticando outro tipo de coletivismo e colaboração. este lugar me ajudou a esculpir alicerces fundamentais para me tornar um artista com tesão para criar peças, espaços e condições para a prática artística. ali aprendi também sobre a vida, a política, sobre coexistir e sonhar em conjunto. em mutirão carregamos blocos do térreo ao segundo andar para transformar uma sala e nossas possibilidades de convivência e sonhos. transformamos a laje em contexto para a cidade. fazíamos regularmente jams, terças de dança, sextas na tomada e teoremas. fazíamos festas para que se pudesse pagar o aluguel do espaço. mas também porque gostávamos da força em festa. eu tive meu único salário na dança trabalhando na sua secretaria e sempre me congelava a coluna quando atendia o telefone e me perguntavam o que era dança contemporânea. em cumplicidade com os demais colegas que também trabalhavam ali, sempre nos entreolhávamos quando o telefone tocava pensando em uma resposta. em inúmeras ocasiões eu citei este lugar no lote. não apenas através da fala, mas no modo de trabalhar, cuidar e promover um contexto. o estúdio não existe mais, tampouco o lote, mas é bom pensar que muitos artistas que por lá estiveram, de alguma forma, continuam essa utopia coletiva vital que ameniza a precariedade da memória em nosso país. e foi pela e para a memória que eu estive escrevendo este texto que corre para a direita mas fez suas retinas dançarem com cada palavra para a esquerda. imaginei isso como um gesto experimental capaz de provocar outras sinapses para sentir um tempo que passou e este que vai passar. essa história termina assim sem um grand-finale, porque o texto termina, esse recorte termina, mas as histórias e suas reverberações não terminam quando esse vídeo terminar. a gente até tenta fazer com que algumas coisas acabem, mas a vida ensina que nada por aqui depende apenas da vontade de um.